terça-feira, 29 de maio de 2012


CRÔNICAS DE SALA DE AULA



            Acuado num canto, aguardo ansioso o momento de dirigir-me ao campo de batalha. Já prevendo o que me aguarda, um desespero silencioso toma conta de mim. Esfrego as mãos com força, fecho os olhos, caminho sem rumo pela sala numa fuga inútil e desesperada. Sento-me novamente. Tento prestar atenção à conversa dos colegas: amenidades, piadas sem graça entrecortada por risinhos nervosos, relatos repetitivos ...nada é capaz de fazer-me esquecer a fúria do leão feroz que me aguarda. Lá fora, o inimigo grita descontrolado intimidando os adversários.
Dado o sinal, é chegado o momento inevitável. Tenso, empunho minhas armas e caminhamos juntos, eu e os colegas, em direção ao sacrifício.
Lentamente, entre gritos e esbarrões vou vencendo o caminho que me leva à arena. Ganho o corredor já vazio e sua longa extensão me parece curta. A proposital lentidão dos passos só faz aumentar minha ansiedade. Sem saída, chego, enfim, à sala de aula.
            Paro na porta tentando me fazer notar, hesitando entre caminhar até a mesa e assumir o meu posto ou desertar, abandonando a obrigação que me foi destinada. A responsabilidade e as contas a pagar falam mais alto. Caminho até a mesa, repouso minhas armas (giz, diário, livros didáticos, textos, desenhos e um pouco de coragem ) e faço votos de que uma delas seja minha salvação no dia de hoje. Cumprimento com um boa tarde sem resposta e observo uma meia dúzia de alunos que, deslocados, me olham estarrecidos e solidários, compreendendo minha situação.
A imagem do ambiente, com suas figuras caricaturais me remete a uma obra de Heronimus Bosch, o pintor do caos. Em meio a uma nuvem de poeira provocada por duas criaturas que varrem a sala com violência enquanto distribuem vassouradas aos transeuntes, três seres indefinidos se enroscam pelo châo aos gritos, e o restante da sala se digladia entre gemidos, choramingos e gargalhadas, completando as brincadeiras e agressões do recreio. Objetos e bolas de papel voam pela sala. Um avião passa à minha frente com destino ignorado, enquanto imagino outros destinos - londres...cancun...ilha de caras...-um pequeno grupo, que mais parece uma multidão, me bombardeia com perguntas, reclamações e exigências, enquanto disputam comigo o exíguo espaço da mesa. Peço licença, já contendo a irritação, e começo a apagar a lousa silenciosamente, lentamente, simulando uma calma que, sinto, acabará antes da minha tarefa. Mentalmente faço cálculos: quanto tempo para terminar a aula que mal começou, quanto tempo para as férias, quanto tempo para a aposentadoria, quanta grana falta para cobrir as despesas do mês...enquanto isso a algazarra continua. Um aluno me interrompe com violência enquanto choraminga _me acertaram uma tesourada nas costas _ já visivemlamete irritado, viro-me antes que me aconteça o mesmo e, em alto e bom som, peço silêncio. Ando pela sala ordenando polida e energicamente _ a princípio _: sente-se quem está de pé, levante-se quem está deitado, saiam da porta, me respeite ou encaminho para a diretoria, desça já da janela antes que caia e quebre uma perna, não rabisquem a lousa..._ e já descontrolado no final: tire a mão dos meus diários, deslige o celular, pelo amor de Deus, ai eu vou enlouquecer...
Com um nó na garganta, os dentes cerrados, caminho até a mesa, tentando impor alguma autoridade. Bato algumas vezes pedindo mais uma vez silêncio enquanto uma enxaqueca anuncia a sua indesejável chegada. Com a pressão povavelmente no teto e a auto-estima no chão, enfim inicio a aula, já sem energias, confuso sobre qual função assumir para tentar colocar um fim à desordem: professor, educador, tirano, amigo, psicólogo, psiquiatra?...ou serial killer? No meu desespero, torço para que alguma força superior e caridosa avance misteriosamente os ponteiros do relógio e que a sirene sinalize imediatamente o final da batalha. Mera ilusão. O martírio está apenas começando. Aproveito uma “bolha” inesperada de silêncio e inicio a explicação. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito vezes... e ainda assim a grande maioria ainda não ouviu e se ouviu não compreendeu. Lá no fundo da minha alma soa um mantra: “meus deus, o que que eu tô fazendo aqui...meu deus, o que que eu tô fazendo aqui... meu deus, o que que eu tô fazendo aqui...” e finalmente deus responde à minha pergunta através de um ser que aparece à minha frente perguntando:_ professor de que mesmo? E outro manta me vem como resposta: estou aqui enlouquecendo, estou aqui pagando pecados, estou aqui redimindo vidas passadas...
Perco o fio de paciência que me resta e desabafo: _“eu não aguento mais”. Mais 5 minutos e eu caio duro! Desta vez a força superior e caridosa ouve minhas preces, acredita na minha premissa e a sirene soa, finalizando o fim da hedionda batalha. Junto minhas armas de forma desordenada e saio em fuga, apressado, olhando para traz temeroso, persguido por uma legião descontrolada que tenta sugar minhas últimas energias. Sobre a mesa esqueço parte da minha sanidade, um pouco dos meus sonhos, bastante dos meus ideais. Comigo, trago um pouco de frustação, desânimo e incertezas. 
 Meu Deus, até quando? 


crônica dedicada ao 6º ano C 

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