Andando pelas ruas do centro da capital paulista onde resido, convivo diariamente com uma grande quantidade de moradores de rua. Seus modos de vida me desperta a curiosidade e a imaginação e um detalhe em especial me chama a atenção: o costume que alguns têm de reservar para si pequenos espaços nas calçadas. Com uma simples caixa de papelão ou um pedaço de cordão, entre outras formas, delimitam precariamente o local onde vão pernoitar ou passar algumas horas. Vejo quase que diariamente uma senhora já idosa que“construiu” com caixas de papelão de eletrodomésticos, um espaço de mais ou menos 1 m quadrado que utiliza para guardar seus pertences e passar os dias (e certamente as noites) solitária observando os transeuntes, os carros e, talvez, refletindo sobre sua existência. E onde quer que vá, ela carrega consigo seu “espaço”.
A atitude desses moradores de rua, antes de ser uma estratégia de auto-preservação, é também uma forma de comunicação não verbal. Uma forma de expressar através de atitudes o que não conseguiriam através de palavras. Ter a existência exposta publicamente todos os dias, torna-os personagens públicos de um espetáculo improvisado que se desenrola pelas calçadas e ruas, em nichos sombrios, bem abaixo de nossos pés, tendo entulhos fétidos como cenário e ratos como coadjuvantes. Uma sobrevivência assim maltrata, machuca, endurece e divide em pedaços qualquer ser com um mínimo de sensibilidade.
E chega um momento que, para prosseguir, é preciso recolher-se (do verbo recolher, juntar, reunir) por um momento, dialogar consigo próprio. E é nesse momento que imagino iniciar-se o ritual que os levará ao encontro de si próprios. Escolher um espaço apropriado, delimitar esse espaço e aquietar-se. Ao se recolherem, ainda que precariamente no espaço que determinaram como “seu” estão, na verdade, procurando preservar-se, a si e ao seu universo particular com seus conteúdos mais pessoais e íntimos.
É nesses momentos que acessamos os caminhos mais tortuosos e sombrios de nós mesmos e caminhamos em direção aquele eu que, escondidinho nas profundezas de nós mesmos, se manifesta clamando por atenção e afeto.
A senhora que mencionei nos diz através de sua atitude e de seu gesto que não quer mais fazer parte desse espetáculo surrealista. O seu eu não quer mais despedaçar-se pelas calçadas. Quer preservar no “seu espaço” o pouco que restou de si e assim segue, protegida por sua frágil fortaleza de papelão, perdida na imensidão solitária e desumana de 1m quadrado.